terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Eu, pelos olhos dele

Na entrada anterior falei-vos do contágio do meu pequenino e da prisão domiciliária. Do medo e da angústia da potencial evolução do vírus. E de como, no final, apenas ele esteve contaminado, apesar dos beijos e abraços e amassos.

Não vos falei da outra face da moeda. De como é ter um miúdo em forma fechado em casa, com a obrigação de acompanhar os trabalhos escolares, mas sem os prazeres do recreio e das brincadeiras com os amigos.

Foi duro. Foi muito duro!

Começávamos, todas as manhãs, com o plano do dia, escolhido de entre as atividades daquele que era o plano semanal preparado pelo professor. O meu rebento estava consciente, portanto, da meta a alcançar, embora tivesse a possibilidade de escolher os caminhos para lá chegar.
Mas nem essa relativa liberdade foi bastante para o motivar. Fez birras, protestou, barafustou, procrastinou.

De nada lhe valeu.

No final, todos os trabalhos foram feitos e toda a matéria foi vista. Como não podia deixar de ser.

Nesta guerra constante que é convencer o meu filho de que tem de se aplicar na escola, as lutas são sempre mais acesas quando se trata de fazer os exercícios de alemão. Não que tenha propriamente dificuldades. Tem um repudio natural que o impede de apreciar a língua e a sua simplicidade na escrita. É claro que nem tudo é simples e que a gramática é meio estranha, mas o que seria da vida sem um pouco de pimenta?

Como o pilar central da matéria, na disciplina de alemão, para a semana em que estivemos encerrados em casa era aprender os adjetivos, um dos exercícios previstos para contexto de aula era a descrição (oral) de alguém.
Mas o professor não poderia corrigir e avaliar a descrição do meu filho, a não ser que a escrevesse. Sua reação: “Escrever?!? Não! Isso é que não! Escrever é uma coisa terrível, que deveria ser proibido nas escolas… “

Pois bem! Não escrever não foi opção.
Talvez para se vingar um pouquinho do “mal” que lhe fiz, decidiu descrever a mamã.

Na sua primeira versão disse que eu era chata, má e feia. Eu li, não estranhei nem me descompus. Aceitei que aquela era a sua visão sobre mim, naquele momento de pós-guerra, chateado e contrariado por tê-lo obrigado a escrever meia dúzia de palavras.
Na versão final, transcrita no caderno minutos depois, alterou o feia por bonita, mas manteve que sou má e chata.

Acho que aceitava melhor ser feia – até porque tenho espelhos em casa.
Ver-me como uma mãe que é má e chata entristece-me um pouquinho. Não porque me reveja nas suas palavras, mas porque constato que ele não compreende o alcance do meu amor. Não percebe que quando passo “horas” a aborrecê-lo com a história de que deve esforçar-se por dar o seu melhor e concentrar-se nos trabalhos, é apenas e só porque quero o melhor para a sua vida.
Não percebe agora.
Mas um dia vai perceber.
Porque uma coisa eu sei: vou continuar a ser má e chata e a puxar por si até pôr a nu toda a sua grandiosidade.

O mais hilariante na descrição que faz de mim é o cabelo laranja. Não sei de onde lhe vem essa convicção. Há anos que me o diz. Será premonitório? Será que vou acordar com as brancas todas alaranjadas? Isso é que era!

A três é que é bom!




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